segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Um ideal, uma utopia

UM IDEAL, UMA UTOPIA

Por Claudio Zannoni

Sou um dos filhos dos grandes ideais e também de uma utopia. Por que lembrar disso agora? Porque eles nos questionam frente ao mundo do século XXI. Velhos problemas que acreditávamos terem sido superados reaparecem bem debaixo do nariz: tráfico de seres humanos, escravidão, prostituição em larga escala, inclusive infantil, epidemias que se alastram, fome, violência contra a mulher, isto é, o ser humano reduzido a coisa, a vida relativizada. A dor do outro é apenas a dor de outro, não nos interessa, porque se diluiu o principio de irmandade e perdeu-se a consciência de que a humanidade é uma espécie única. Não há, portanto, como não evocar as tentativas de superação do individualismo ao longo da história.
Liberdade, igualdade, fraternidade foram os lemas da Revolução Francesa. O Marxismo se fundamenta também no princípio de direitos iguais, no respeito à dignidade humana. Esses foram os ideais que se transformaram em sonhos tão caros à minha geração. Inspirada neles surgiu na Califórnia, no ano de 1968, a comunidade alternativa denominada Urso Negro, fundada por um grupo de hippies. Este grupo pretendia colocar tudo em comum: terra, água, moradia, comida, roupa, ideias, modo de vida. Era uma comunidade autossustentável cujo lema era “terra livre para pessoas livres”. Um ideal utópico, para a sociedade daquela época e contracultural porque, antes de tudo, era uma crítica contundente ao modelo de sociedade daquele tempo, consequentemente também ao de hoje, já que o individualismo venceu, os paradigmas foram destruídos, a fraternidade relativizada. Viver em comunidade alternativa significava uma mudança de princípios no que diz respeito à posse, à individualidade. A relação entre os gêneros também foi revisada e mudada porque se acreditava na liberdade incondicional da mulher.
Essa experiência durou alguns anos, mas, posta à prova pelo individualismo de alguns, não resistiu. O ideal de pôr tudo em comum sucumbia ao desejo de posse: de coisas, de pessoas, de condições. A sociedade ideal é certamente uma utopia, mas o desejo de viver numa sociedade ideal é legitimo.
Em algumas sociedades indígenas brasileiras não existe a palavra propriedade ou, se existe, esta passa a ter um significado diferente daquele que é colocado por nossa sociedade. O que determina a “propriedade” de um bem é seu uso, portanto, cada qual pode usufruir dele quando precisar. O pronome possessivo meu/minha é usado quando uma pessoa se refere às partes do seu corpo: minha mão, minha cabeça, etc.
O desafio está lançado: como construir a igualdade na diversidade? A esse desfio a comunidade de Urso Negro quis dar uma resposta. É possível construir a igualdade na diversidade quando cada um é valorizado por aquilo que é, por sua diversidade, por suas especificidades as quais não se sobressaem para dominar, para se sobrepor ao outro, para ter mais, para dominar mais, mas para se complementar com os outros, dos quais também ele necessita, para servir, para ser sinal de justiça e paz. Não foi por acaso que essa mesma época as décadas de 1960 e 1970 ofereceram ao mundo inteiro homens de paz que encarnaram esses ideais: Gandhi, Dom Helder Câmara, Martin Luther King e tantos outros que gritaram aos quatro ventos que construir um mundo melhor é possível.
Você pode dizer que tudo isso é velho, superado, faz parte de uma outra época. Tudo bem, mas a dominação do homem pelo homem é muito mais antiga e continua atual e confirmada como única possibilidade. A violência contra a mulher e contra a criança são males tão velhos que por um tempo os consideramos extintos e eis que reaparecem e são tolerados, conforme se ouviu da boca do goleiro Bruno: “Qual o homem que nunca saiu na mão com a mulher, cara?”
Construir alternativas é necessário e não é coisa de “bicho grilo” nem de burguês entediado, não se pode mais tolerar essa concepção de que as pessoas são coisificadas. A coisa em si tem muito mais valor que a pessoa que a carrega. Precisamos de alternativas. Elas existem, basta procurar.

Claudio Zannoni
Editorial publicado na revista
Cadernos de Pesquisa Vol. 17, n. 3
setembro-dezembro 2010

Um comentário:

  1. Os velhos problemas não superados atualizaram-se e, embora velhos, são sempre novos e de certa forma vitalícios enquanto não for resolvido o legislativo, o executivo, o judiciário e toda política corrompida no berçário de cada partido, a cidadania desprotegida de cada voto. Algumas coisas tendem a indicar que os ideais se desgastaram, entraram em colapso, falência. Mas pode ser que nós é que perdemos a fé nos ideais. Não é a mesma coisa, apenas igualmente negativo. Quiçá perdemos a fé no coletivo e os ideais continuam com restrita fidúcia. As pessoas se reúnem em espaços restritos, seletos amigos de ética ímpar nutrem fraternidade dosada de igualdade, irmandade e na troca de afeto, são livres. São “grupos individuais” e só existem porque se preservam do coletivo. O coletivo não expede fé! Quem acredita no coletivo? O coletivo não tem unidade e sem unidade cada parte é apenas uma dízima sem expressão matemática. Porém, a internet parece que está aglomerando, apresentando anônimos a desconhecidos e formando grupos gigantescos, obelisco de gente que nos dá uma nova idéia de união, adesão, cumulação de forças, ideários, luta. Ou seria uma quimera que alimentamos na tela do computador e nos dá a ilusão quase realista disto por suas características mais óbvias, como a rápida inclusão de membros, agregação de números. Pode ser uma falsa idéia de mobilização, onde a aceitação é no fundo pusilânime e inexpressiva por apenas incluir e ganhar algarismos, usuários e em essência ser apática por seu caráter efêmero, incapaz de modificar a realidade. De vez em quando, muito de vez em quando, vejo um grupo de carne e osso protestando por aí, mas parece patético, sem legitimidade, um barulho sem áurea ou algum verbo que o valha! Posso estar completamente enganado e alguma coisa mais eficiente, anterior à minha visão falha tenha se antecipado à minha retina como uma lente embotada de perfídia que muita embora consiga me dar esta impressão!

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