Eram tempos felizes aqueles. Tempos de infância, ingenuidade
e muita traquinagem. Depois do colégio, primeiro, o Instituto Senhor
do Bonfim, depois, o Freitas Figueiredo, o almoço, logo em seguida, brincar de
ser motorista e passageiro com um aro feito de pneu de carro tendo por
condutor, Daniel, filho de seu Juca e Dona Vitória. Era a primeira
brincadeira porque começava às 13:00 h, sol forte na moleira. Depois, comandado
por Darlan, jogo de botão, esfrega porcelana na calçada para ilustrar os
grandes jogadores. Meu time sempre perdia, nunca fui hábil. Em seguida, a
boa e divina bola, às vezes na rua, ralávamos muito no asfalto, às vezes no CSU
da Cohab, no campinho, espaço nosso onde nossa trupe cresceu junta, grande
espaço de lazer.
Nosso time de futebol era a Portuguesa, equipagem
comprada pela Dona Antônia, já falecida, mãe de Kekê. Os números foram bordados
pela avô de Lúcio, dona Irene, também falecida, juntamente com sua filha,
Dona Vitória. Eram zelosas conosco, cuidavam da gente. Eu era
zagueiro. Foi com Lúcio que peguei a minha primeira e última pisa de
Currupira.
Certo dia, meu pai disse para eu não ir caçar no mato. Mato
se entende hoje os bairros do Cohatrac e Planaltos. Eu “odeio” (risos)
esses bairros, afinal, “eles” destruíram a mata em que nos brincávamos.
Vimos esses bairros nascerem.
Esperei que meu pai dormisse, peguei a baladeira
(estilingue) pendurada na rede, cortei a vasilha de plástico de água sanitária
no topo, amarrei na cintura, enchi de pedra e mamona e fui bater na casa de
Lúcio para caçar passarinho. A Rua 8 era o istmo que separava o último espaço
urbano entre a Cohab e a Maioba, entre esses, uma imensa mancha verde. Lúcio
acertou e matou um anum, errou um rouxinol. Era a minha vez. Mirei num
chico-preto, foi quando ouvimos a mata quebrar, passos largos e rápidos em
nossa direção, bem próximo de nós avistei os pés para trás, gritei:
Currupira!!!!!! E perna-pra-que-te-quero, deixando tudo. Quando chegamos ao
asfalto, nossas pernas estavam todas ensaguentadas, fruto dos espinhos de tucum
que cruzamos sem darmos conta. Nunca mais cacei passarinho, odeio vê-los
em gaiola.
Uma de nossas outras diversões era banhar no Rio Itapiracó:
límpido, águas cristalinas, cercado de muito verde, calmaria,
paz. Levávamos quase meio dia para chegarmos a ele. Na volta para
casa, cortávamos toras de bambu para fazer armação de papagaio (pipa), havia
uma quantidade imensa de bambu. Soube que o Rio Itapiracó virou esgoto. Recuso-me
a voltar lá. Não quero ver.
Raras vezes íamos ao matagal no Terceiro Conjunto onde hoje
é a ocupação Isabel Cafeteira, para brincarmos de polícia e ladrão.
Tudo aquilo ali hoje está ocupado.
A Cohab começou ser construída em 1968, dentro do plano de
expansão do antigo BNH e do processo de expansão urbana da cidade com a
criação das avenidas Jerônimo de Albuquerque, Franceses, Portugueses, Daniel de
La Touche, Africanos e Holandeses, eixos condutores da cidade.
Precisamente na Cohab, cuja Avenida Jerônimo de Albuquerque
passa, havia uma ramificação do Rio Anil: grande e extenso, hoje, completamente
desaparecido, soterrado.
O IV Conjunto, o último a ser construído, bairro onde
me criei, é de 1973-1974. Minha rua, a 17, meus pais foram os
primeiros moradores e permanecem lá até hoje. Dessa rua eu vi o mundo,
primeiro através das brincadeiras, depois, subindo no telhado de minha
casa.
Por ser um bairro muito distante, hoje não mais, a
noção de referência muda, existem bairros hoje mais afastados do centro; minha
trupe só saía para coisas que o bairro não possuía; como hospitais,
cinemas e congêneres, de resto, a noção de brincadeira era impensada fora de
nossos domínios. Nosso bairro era nosso mundo.
Ali, brincávamos de chutar lata, explodir lata de alumínio
com bombas de morrão, cola-bandeira, jogar pedra nas casas alheias, tocar
campainha e sair correndo, empinar papagaio (pipa), fazer cerol
para lancear, dar sacalão, correr atrás de papagaio de compasso,
borboleta, bola, roubar carretel de linha, empinar curica, cair no poço.
Cair no poço era uma forma muita ingênua de beijar as garotas, da qual não
trago boas recordações. Eu era o mais jovem, menor e feio dos
meninos. Depois de muito tempo, saquei por que as meninas na minha vez sempre
pediam abraços e beijos no rosto, nunca salada mista – beijo na boca. Quem
apertava os olhos de quem iria beijar o garoto nunca pressionava, indicando ser
alguém desinteressante. Otávio, Paulinho, Lúcio, levavam todas. Tempos depois,
talvez por pena, quem primeiro me beijou foi Nenê.
Nunca esqueci aquele beijo.
Tudo entre nós girava em torno do nosso bairro: festas,
lazer, comemorações, até o ano de 1985, quando algo começou a mudar entre a
gente. Esse ano marca a inauguração do Shopping
Tropical, no bairro do Renascença. Eu tinha exatos 11 anos. Até aquele
momento vestíamos roupas de domingo para ir à missa ou nos preparávamos para as
festas. Havia uma competição ingênua para exibição da basqueteira (hoje
tênis), a calça e camisa novas.
A partir daquele ano, começamos a nos vestir
para apreciarmos as vitrines, passearmos pelo shopping, sem comprar nada,
obviamente, eram todos muitos pobres. Esse ritual começou a ficar cada vez mais
frequente, e a Cohab começou a ficar pequena para nós. Nosso espaço
de sociabilidade começou a mudar, afinal, era um longo trajeto entre a
Cohab e o Renascença, e víamos paulatinamente as transformações urbanas na
cidade; perdemos a ingenuidade, a infância, queríamos ser adultos-infantis,
começamos a querer consumir.
As brincadeiras pueris perderam o sentido. Deixamos de lado
o carrinho de rolemã, patinete, o andador de lata (duas latas ligadas por
um fio), a roda de pneu imitando um ônibus, as bombas de morrão, a camisa
descoarada da portuguesa, o cancão desenhado no asfalto, as baladeiras com
mamonas pra caçar, o Rio Itapiracó, correr de bicicleta, nem todo mundo
tinha, então até a cargueira do Sr. Machado entrava na roda, jogar bola no
colégio Geraldo Melo, dançar na quadrilha do Joca – a Princesinha da 13 –, ouvir as batidas ritmadas do bloco
tradicional Os Vigaristas,
de Sr. Valterlino, pegar suquinho fiado na casa de Dona Irene, ir às festas na
casa de dona Nicinha, subir no telhado de zinco do ginásio do CSU, disputar campeonato
de futebol, jogar vôlei, brigar entre a gente como rito de passagem e
demonstração de dureza. Eu sempre apanhava, era o mais fraco.
Nunca vou me esquecer quando minha mãe sempre
pegava na minha cabeça para saber se estava quente de sol, se estivesse, era
sinal que havia desobedecido à ordem dela de não sair, além da célebre frase: “se
apanhar na rua, vai apanhar em casa também”. Eu apanhava duas vezes. Meu amigo
Kekê sempre me batia. Hoje dou risada: tenho 1,83 de altura, 107 kg, ele ficou
um pirralho. Risos.
A cidade ficou maior que a Cohab. Hoje entendo o que Piaget
afirmou quando disse que a percepção de tempo entre o zero e os quinze anos é
maior do que entre os quinze e os trinta, embora cronologicamente sejam o
mesmo período. A diferença é a noção de tempo. Nos anos iniciais
não há passado e futuro, somente presente, nos anos posteriores sabemos o que
vivemos, o que temos para viver, por isso, a ansiedade é maior, por
conseguinte, a percepção de que o tempo passa mais depressa.
Hoje, todos crescemos. Alguns se casaram, descasaram,
tiveram filhos, foram embora, seguiram seus rumos, amadurecemos, nos perdemos
de vista. Alguns poucos ainda moram por ali. Sempre revejo alguns
quando visito meus pais. Tempos felizes.
Com o risco de esquecer nomes, por vezes sentado na porta
dos meus pais me lembro da cena de todos sentados na calçada de Dona Irene
tentando decifrar mímicas: Dalbequis, André, Jacqueline, Fernando, Otávio, Felipe, Luis, Eron, Diquinho, Fernanda, Daniel, Ligia e Regina, Darlan, Nenê, Dadá
e Shirley, Nickson, Nilson, Ruthane e Rúbia, Lúcio e Rogério, Cinthia, Gibson,
Kekê, Samia e Nega, Miúda, Cristina, Paulinho e Fabinho, Denilson. Além
dos vizinhos da Rua 13, Avenida 03 e Ruas 16 e 15: George e Urbano, Glauber,
Cacau, Alan, Fabrício, Cabeça, além da moçada mais velha: Douglas, Pininho,
François, Kennedy, Edinho, Sérgio, Nato, Wellington, Wenner, Nerino e Zé
Raimundo, Gari, e meu amado irmão Homell, que me batizou pela alcunha de
“Caga-pau”, ou seja, cagueta. Sou flamenguista e canhoto por causa dele.
Eu era destro, mas ele me ensinou Karatê e a chutar com a perna esquerda. Sou
destro na escrita e canhoto na perna.
Depois veio a segunda geração, mais nova, já com outras
brincadeiras: Preá, Felipe, Luiz Fernando, Fernando, Alan e Júnior,
Pimpolho, Marcelo, Marrame.
Definitivamente, o mundo passou a ser a nossa casa, a Cohab
deixou de ser o nosso planeta para ser o lugar de nossa infância.
'Nos anos iniciais não há passado e futuro, somente presente, nos anos posteriores sabemos o que vivemos, o que temos para viver, por isso, a ansiedade é maior, por conseguinte, a percepção de que o tempo passa mais depressa'...perfeito, amigo Henrique! DEZ para sua sensibilidade na colocação dos fatos. Bjsss.
ResponderExcluiro que dizer de ti celita. beijos e obrigado por tudo. abraços
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirmuito bom Henrique. Mas sobre a sua mata, hoje é um bairro maneiro: Cohatrac City
ResponderExcluirpoeta-de-papel, é claro que admiro o cohatrac, afinal, eu me divertia no club de lá, além das festas juninas e outras diversões. foi só uma brincadeira
ExcluirNossa, lendo a tu crônica, a lembrança da tua infância, me transportei e revivi a minha! Adorei! Parabéns!
ResponderExcluirobrigado querido (a). que bom que gostou. abraços
Excluircomo sempre, belo texto! parbéns
ResponderExcluirobrigado querido roni
Excluirtb cresci na Cohab, mas dizer que o Cohatrac destruiu a mata, nao, nao, a Cohab tb destruiu, ou o que havia lá antes entao, mas enfim boa memória...
ResponderExcluirmeu caro (A) estava brincando, é claro que gosto do cohatrac, é que na minha infancia era assim que eu enxerga o bairro. abraços
Excluir