sexta-feira, 13 de julho de 2012

Sobre linchamentos públicos em São Luis

Ao buscar minha secretária em sua residência no bairro do Coroado, proximidade de onde moro, deparei-me com uma pessoa atônita, perplexa com o que havia ocorrido na noite anterior: mais um linchamento público contra um ladrão apanhado em ato ilícito. Como de costume, apanhou muito, quase foi a óbito sem a menor interferência do poder público, revelando o estado qual se encontra a nossa sociedade. 

A questão do linchamento é uma prática mais corriqueira do que se possa imaginar em São Luis, acontece praticamente todos os dias, revelando o alto grau de instabilidade e de descrédito quanto ao poder público no estado do Maranhão. 

Lembrei-me da apresentação que fiz do livro do Profº Yuri Michael Pereira Costa, fruto de sua dissertação de mestrado, que passo a transcrever abaixo, relatando e analisando exatamente a questão dos justiçamentos feitos na cidade de São Luis, o trato da coisa pública e como setores da impressa abordam a questão.   

Quando terminei de ler A outra justiça: a violência da multidão representada nos jornais (2008), algumas questões acerca da cidade de São Luis me vieram à mente. Uma delas é que os linchamentos — que continuam ocorrendo rotineiramente nos bairros da periferia desta cidade —, quer sejam os que o autor cognominou de “justiçamento coletivo” ou “alternativo”, enquanto simbolizações da ausência do poder público nestas áreas e ritualizações da emergência de um tipo de organização social, para além da repressão ou controle do estado, quer sejam os que o autor coloca como ponto de partida para se pensar a questão da violência a partir dos linchamentos. 

É que a máxima da oficialização da violência sob o controle do Estado, já descritos nas obras de Rousseau, Hobbes, Thomas More, Weber, Durkheim, e mais recentemente em autores como Hannah Arendt, Norberto Bobbio, Norberto Elias, entre outros, precisa ser acrescentada a partir da visão de Baudrillard, Guy Debord, Enzenberger, se quisermos entender o “espetáculo” da cobertura jornalística feita a partir dos diários de São Luis durante os dez anos da pesquisa, 1993-2003, como o autor bem o fez, não apenas como representação da violência a partir dessa mídia, mas o quanto tal representação está repleta de uma “ética da violência”, “estética da violência” e “violência enquanto estética”.

A “ética da violência” é resultado da forma como o Estado através das suas políticas públicas tratou, dentre outras questões, do crescimento desordenado da cidade, seguido de sucessivos êxodos rurais, sobretudo a partir da década de 70 do século passado. O êxodo é fruto da violência do Estado perpetuado pelo tratamento dado a essas pessoas, já residentes na capital do Maranhão. Nessas áreas, que se constituíram enquanto micro-cidades dentro de  São Luis, os “justiçamentos coletivos” ou “alternativos” eram e ainda se constituem enquanto uma “ética” implementada pelos moradores como legitimação, organização, controle e resposta, quer para o Estado, quer para quem transgride as regras de conduta social, transformando e construindo novas sociabilidades.  

A questão emblemática é que tal violência perpetrada pelos moradores dessas áreas àqueles que cometem algum delito resultante nos linchamentos, não se constitui como questão isolada como se os demais moradores da cidade observassem tais ações enquanto paisagem da pobreza taciturnamente, sem que o chamariz das reportagens dos jornais locais não retroalimentassem a “estética da violência” por detrás de toda a estratégia da redação como forma de atração de um tipo específico de um público leitor e consumidor de tais matérias.

Nisto reside à violência enquanto estética. A estética da violência utilizada pelos Jornais deita suas raízes no fascínio que as matérias provocam, no conteúdo das discussões internas de uma equipe de redação, no que compõem a formatação dos jornais, na participação direta ou enquanto espectador dos linchamentos, na naturalização ou banalização de tais atos. Aliás, não se trata de dizer que a violência estética dos linchamentos é uma naturalização ou banalização da violência, mas o quanto a atração midiatica para os atos de justiçamento são em certa medida uma sublimação de tantas outras formas de violência, quer simbólica, quer física que os moradores da cidade de São Luís cometem todos os dias.

O problema é que existe uma banalização da violência, a tal ponto da população se achar no direito de fazer justiça com as próprias mãos, ou seja, um retorno ao estado de barbárie, do período pré-moderno, da constatação de que a população não respeita, acredita ou se sente representada pelas estancias burocráticas do aparelho estatal democrático. É um verdadeiro Deus nos acuda, salve-se quem puder.

Existe sim a dignidade humana e condição ôntica, física de qualquer transgressor que precisa ser amparado por lei. O total desrespeito a isso é a comprovação de que a vida não é uma questão amparada pelo estado de direito, e sim, que tal estado sequer é compreendido por segmentos sociais. A bem da verdade, em alguns bairros de São Luis estado é sinônimo tão somente de repressão policial.

Minha secretária de uma forma afirmou que isso é uma prática comum, ou seja, é um aviso ao próximo infrator do que acontecerá com ele caso seja pego. E a falência do tecido social.
 
Experimentem passar por uma banca de jornal e leem suas manchetes. A sacralização/banalização da violência é a constatação da ética da violência. Quando a ética é a violência é sinal de que algo está muito, muito errado. Ética não é isso.                 

6 comentários:

  1. É interessante, porque se pensarmos um pouco mais no assunto percebemos que há várias 'éticas'... Como se houvesse um livro de regras paralelo aquelas que são 'instituicionalizadas'. Todos sabem quem não se pode furar fila, no entando...
    Isso me lembrou bastante as teorizações sobre as massas. Como ela acaba ganhando vida, e os indíviduos pertencentes a ela deixassem de pensar num linchamento, em uma fuga...
    Mas afinal de contas, seria uma saida para a falta de liderança oficial - a polícia - ou uma reação natural humana descendente da 'Lei do Talião'?

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    1. de fato Polyana, há várias éticas, mas há aquela, ainda que uma construção social, que é o respeito à vida, garantidora de um equilibrio social. quando uma população insadecicida decidi fazer justiça com as mãos, a noção de organização social está em grave risco

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  2. Concordo com sua interpretaçao sobre a forma como a violência vem sendo vista. Trabalhei em uma escola proxima ao Coroadinho, certa tarde uma aluna da 6ª série chegou triste: viu o irmão de 17 anos ser esfaqueado na sala de casa. Motivo: acerto de contas. Quando a turma me contou detalhes e me disse o motivo, fiquei chocada não apenas com o assassinato,, mas como a forma como tudo era contado. Não vi crianças de 12 anos chocadas com o acontecimento, mas relatando tudo como um filme de ação. Cada aluno tinha outras historias com o enredo parecido para contar, não porque ouviu, mas porque viu, viveu. Foi uma tarde dificil.
    Se por um lado tive a sensação de que a naturalidade da violencia crescia como as crianças; por outro lado vi a solidariedade, vi laços entre aquelas crianças. De alguma forma, eles queriam confortar a colega. Ficar perto dela, levar um cremosinho na hora do lanche, contar para a professora sobre o acontecido. Era uma maneira de dizer que ela não estava sozinha.
    Ainda que tudo pareça confuso e absurdo, a violência sempre encontrará um grande opositor os laços solidários. Sua cronica possibilita a reflexão dos leitores e mostra que é preciso duvidar, é uma conversa para chamar atenção, é um ... cremosinho.

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    1. de fato meu caro (a). relatos como os teus nos abrem os olhos sobre a gravidade da violência na cidade, sobretudo nas escolas. teu depoimento é comovente e marcante. obrigado

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  3. Perfeito. Eu só não imaginava que estivesse em grau tão avançado a violência em São Luís. Ingenuiade minha: como é possível uma cidade tão desassistida como a nossa em saúde, moradia, transportes, etc, etc, etc... não o ser em matéria de seguança? É revoltante o descaso do poder público em relação a sua população, mas nunca devemos nos acostumar com o desmando e a injustiça, pois quando isso acontecer nós estaremos vencidos e inaptos para a luta. Um abraço e continue se indignando diante de fatos tão grotescos. Margô Maia

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  4. mana, na periferia o bicho pega pra valer. acredite

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