domingo, 17 de março de 2013

Clausura

Eram ensimesmados. Embotados. Do alto de suas casas sempre avistavam ao longe a dimensão da baía que os guarneciam dos estrangeiros, ao mesmo tempo que os impedia de saírem dali. Eram sempre absortos em si mesmos, sempre se achavam os melhores, os mais importantes, os anunciadores das boas-novas, das coisas vindas do outro lado de lá.

Viviam uma relação dúbia com aquele lugar. Sentirem-se os melhores servia como uma função de distinção social, no entanto, sabiam internamente que eram os melhores apenas dali, daquele lugar. 

Havia tanta vida lá fora, havia também ali dentro, mas a vida de dentro eles se consideravam superiores demais para enxergarem, para se misturarem com as gentes simples, “rota”, “rudela”, como alguns afirmavam.

O problema é que no mundo enclausurado de si mesmos, repetiam as mesmas práticas da gente rota que criticavam. No fundo eram piores, pois as gentes simples nunca foram rotas, eram sim simples. Viviam de acordo e conforme suas concepções de vida.

Avistar o mar que banhava a entrada da cidade era uma atitude poética; mar grande, gigante, bravio, caudaloso, escuro. A linha do horizonte guardava uma dubiedade: vontade de transpô-la, medo de atravessá-la. O que existia para além daquela linha? Por que todos, ou quase todos que chegavam àquele lugar vindo de fora eram mais reconhecidos, melhores do que os dali?

Com o passar dos tempos, os anos iam se acumulando nos musgos dos telhados das casas, a parede rachada, os tetos salpicados de luzes do sol, o cheiro da umidade nas paredes, as ruas sujas, pessoas envelhecendo e o mesmo mar separando a pequena ilha do restante do mundo começava a entorpecer os "bons daquele lugar". Já não se sentiam tão consoantes com o mundo, embora se achassem ainda melhores do que os simples dali.

Começaram a perceber que as coisas comezinhas, as furitricas, o disse-me-disse, se tornavam uma espécie de vício recalcitrante, típico de lugares pequenos, como aquele, e que o orgulho que guardavam no peito por serem os melhores era uma piada fora dali. Ser melhor ali não era muita coisa fora dali.

Os anos se passavam como chumbo. O céu pesava e descia mais dia após dia. O impulso inicial para escrever, para estarem estampados nos jornais seus escritos, para receber sempre as mesmas condecorações, as mesmas pessoas, os mesmos comentários, as mesmas intrigas já não estimulavam mais. O problema continuava sendo sempre o mar que os separava de tudo. 

Como transpô-lo? Que fazer lá fora? E se conseguissem atravessar a linha do horizonte e viverem em outras paragens, sobreviveriam ao anonimato? 

Mas havia também os que atravessaram e conseguiram reconhecimento. O problema era a inveja. Os que ficaram se perguntavam como alguns haviam conseguido e eles não. Era melhor ficar mesmo, afinal, melhor ser rei em terra de gente rota que ser anônimo em terra de gigantes.

A ilha se constitui uma verdadeira clausura, embora a céu aberto, espaço abundante, céu por testemunha. A verdadeira prisão era interna, não era o mar que impedia a saída. 

A dimensão geográfica da ilha se constitui numa circunscrição subjetiva de ilha nas mentes dos homens ilustres. 

Ali, eles estão presos até os dias de hoje.    
                   




3 comentários:

  1. Conheço um lugar assim,e tenho um sentimento parecido com esse teu em relação a esse lugar!!;;!;! Senti-me contemplada com teu texto. Um grande abraço. Denize .

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    1. minha amiga denize, eu também conheço e todas as vezes que passo pela beira-mar me lembro dele. porque será, hein?

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  2. amanhã começará as aulas do programa darcy ribeiro?

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